terça-feira, 17 de junho de 2008

Abel e Natália - Parte 1

Aquela sexta-feira à noite de Junho constituia um alivio para Abel. Por duas razões: não só era o inicio do fim de semana, mas também era algo que esperava desde há algum tempo: a festa de aniversário/inauguração da casa do seu amigo de infância e ex-vizinho, o Marco Soares.


Conheciam-se há mais de vinte anos, desde que eram colegas na mesma turma da terceira classe. Agora, um era recém-doutorado e a dar aulas na Universidade Livre de Coburgo, como professor de História Contemporânea, e Marco trabalhava na Bolsa de Valores, numa consultadoria financeira. E aparentemente, as coisas na Bolsa tinham corrido bem, pois subira 1,12 por cento...


Mas claro, isso não era o motivo da festa. Marco fazia 29 anos, idade que Abel já tinha resolvido há algum tempo. Aquele 27 de Junho era anormalmente quente para a altura, com temperaturas na ordem dos 35 graus. Não é que ele tivesse notado o calor lá fora, pois ele tinha trabalhado todo o dia com o ar condicionado ligado. O choque do ar ameno com o ar quente nem o perturbou muito. O alivio era que finalmente tinha corrigido os testes de final do ano, quer do curso de História, quer do curso de Jornalismo. Eram mais de 200 testes, cada um com as suas nuances, cada um com as suas gralhas, algumas delas de bradar os céus...


Depois de chegar a casa e tomar um bom banho, lá se vestiu condignamente para a ocasião. Para um dia de calor como aquele, uma simples camisa azul e umas calças de ganga serviam, com os seu par de ténis favorito, umas negras com as riscas brancas das "Ardidas", como ele gozava. Como sabia que haveria mulherio por ali, desabtoou estratégicamente um dos botões da camisa, que era para se ver os pêlos do peito. Não era muito diferente do dia-a-dia, mas sabia que as raparigas do curso diziam que ele era dos profs mais populares da faculdade. E tudo isso num ano! Seria da pinta ou das aulas? Queria acreditar na última hipótese...


A ocasião servia também para comemorar a sua última aquisição, uma aspiração com dois anos e que finalmente poderia adquirir, não sem antes ficar com quase sem nenhum tostão no bolso: um Mini Cooper vermelho. Já em segunda mão, com três anos, mas as riscas brancas de lado e a potência, era mais uma prova de que não só estava bem na vida, como se convertera orgulhosamente em mais um membro distinto da burguesia. Mas o seu amigo Marco era pior: um capitalista puro e duro!...


Lá ele ligou o carro, acendeu o ar condicionado, tão necessário num dia como este, e fez o caminho até ao "loft" de solteirão do seu amigo. Quando chegou, reparou que era o terceiro a chegar. Trocaram um abraço cumplice, e cumprimentaram-se à sua maneira:


- Atão meu! Muitos parabéns, pá!
- Parabéns pelo teu curso, meu. Era aquilo que tu querias, não?
- Opá, ao menos ser "nerd" compensou, não é?
- Sim, valeu a pena a competição no Liceu para ver quem tinha as melhores notas.
- Mas a tua mãe dava uma achega...
- Mas a Matemática nunca foi o teu forte.
- Tirava o suficiente para passar. Tu eras um barra!
- E tu a História gozavas com todos...
- E a Geografia, e Inglês... afirmava, enquanto desviava os olhos, em contemplação para a nova habitação do seu amigo.


Decoração moderna e acolhedora, tinha as paredes pintadas a laranja escuro, quase salmão, com sofás pretos, soalho de madeira e um enorme plasma sobre uma estante de madeira. Quase ao lado estava uma estante cheia de DVD's, com centenas de filmes, que iam desde os clássicos aos modernos. Aproximou-se da estante, e passou a contá-los: Já tenho, já tenho, ainda não mas não gosto...


De repente, aparecem na sala mais dois bons amigos comuns: o Gilberto, outro dos vizinhos, agora um advogado a estudar para o Real Conselho da Magistratura, ou seja, estudava para ser Juiz do Rei, e o Alvaro, engenheiro informático que trabalhava numa multinacional de comunicações móveis.


- Atão meus, isto vai ser a festa do parafuso? As garinas, meu?
- Já vêm, tudo a seu tempo...
- Espero que sim, senão processo-te por publicidade enganosa! respondeu Gilberto, mais atento às leis. E de acordo com o Decreto-Lei 38/92 de 2 de Março...
- Não é assim que vais conquistar as garinas, Gilberto. afirmou Alvaro, enquanto que lhe punha uma cerveja fresca na mão, e dava outra a Abel.
- Opá, agua da vida, respondeu Abel.
- Na realidade, esse nome se dá ao whiskey- respondeu Gilberto
- Nâo quero saber. É disto que precisamos num dia como este, afirmou Abel.


Os quatro concordavam, enquanto bebiam um golo. Abel chamou a eles o sentimento nostalgico dentro deles.

- Lembram-se das nossas festas na residência? Com aquela bela arca frigorifica de papel de parede verde, cheia de duas coisas: carne e cerveja? E aquela dispensa cheia de "six packs" até ao topo? Isso sim, eram belos tempos.
- Que resolveste prolongar, gozou Alvaro.
- Eu resolvi ser prof, meninos. Só que em fez de aturar putos ranhosos de 12 anos, aturo pessoal mais velho. Tem mais cabeça. E lá ganho tanto dinheiro como vocês.
- Não acredito que ganhes 4500 Euros como eu ganho na empresa, atirou Alvaro.
- Não anda longe. Só em ser professor assistente naquela Universidade, são 2200. E para o ano, quando for efectivo, tenho 3500 de base, mais um extra por cada hora de aulas. Eu vou ter quatro turmas no ano que vêm, cada um com 50 alunos...
- Que cadeiras vais dar? perguntou Marco.
- História do Século XX, em História. História Comtemporânea, em Jornalismo. E querem que eu dê História da Imprensa ou História do Jornalismo para o mesmo curso... enfim, no final, vou dar mais aulas fora de História do que em História. Se não é hilariante, anda lá perto...
- E agora em exames, deves apanhar cada calinada, não?
- Olha, ó Marco, lembras-te das histórias que a tua mãe contava? Pronto, já ficas com uma ideia... Contado, ninguém acredita! Sabem a resposta que eu tive sobre o motivo pelo qual começou a I Guerra Mundial?
- Não. Qual foi? perguntou Gilberto.

Abel faz um compasso de espera e olha para as caras dos amigos, expectantes para saber o que lá vinha. Sorriu e disse:

- Um pirralhinho qualquer disse que aconteceu quando o "Big Laden" - juro, estava escrito assim! - atacou as Torres Gémeas a 11 de Setembro de 2001, afirmou, quase a escangalhar-se de riso. Os outros acompanharam-no na risada colectiva durante algum tempo. E sabes o que escrevi? afirmou Abel, a recuperar da risada. Escrevi a vermelho "Século errado. Acho que eras nascido quando isso aconteceu", afrirmou, antes de partir para nova barrigada de riso colectivo.
- Mas só apanhas dessas respostas? perguntou Alvaro.
- Não. Mas esta foi demais. Parecia que estava a gozar com a minha cara, explicou Abel. Os meus alunos, graças a Deus, sabem o que foi a I Guerra Mundial, as batalhas de Verdun e do Marne e o Tratado de Versalhes. Sabem quem gahhou e quem perdeu a guerra. Até sabem demais!

A conversa durou mais alguns minutos, enquanto apareciam mais convidados. A namorada de Alvaro, Rita, uma linda rapariga de cabelos encaracolados negros e olhos claros, e que tinha sido colega de curso de Abel (e que a apresentou a Alvaro, numa das inumeras festas nessa casa...), o Rui, outro bom amigo do grupo mais a namorada, Penélope, entre outros, colegas de trabalho de Marco.

Este aproxima-se de Abel, e segreda-lhe quase ao ouvido:

- Tenho uma pequena surpresa para ti.

- E qual é?

- Sabes quem vem cá, passar o fim de semana?

- Não.

- A Natália.

O ar foi um pouco espantado. A Natália! Quem diria? A sua namorada espanhola, que conheceu quando passou o ano de Erasmus em Coburgo, e que graças a ela tinha passado alguns dos melhores momentos da sua vida, e que tinha feito abalar as suas convicções de solteiro, estava de volta. Já não a via há mais de seis anos, embora se tenham correspondido regularmente, e sabia que tinha um "novio" e que se iriam casar proximamente.

Sabia que ela era agora "pivot" na CNN+, a filial espanhola da aclamada rede mundial de informação (provavelmente até deve ter conhecido a Letizia Ortiz, agora Princesa das Asturias), mas como não tinha o canal na TV Cabo, não podia saber se o seu aspecto tinha mudado muito ou não. O anuncio da sua vinda pô-lo alerta, mas não tinha ilusões sobre o passado, embora tenham acabado a bem.

- Então é por isso que a Luisa ainda não veio?

- Sim, foi buscá-las ao aeroporto.

- Elas? Há mais?

- Parece que trouxe umas amigas, que queriam conhecer a Sildávia.

- Ahh... Tá bem.

- Como é que a convidaste?

- Não fui eu. Foi a Luisa. Sabes como são as raparigas...

- Bem, ela sempre se deu melhor do que todos nós. E tinha uma paixoneta pelo Javier... afirmou, com um sorrisinho malandro na boca. Por falar nele, não sabes por onde ele anda?

- A trabalhar na agência imobiliária do pai, em Madrid.

- E que eu saiba, ainda é uma das maiores de Espanha.

- Exactamente. Mas parece que quer sair e ir trabalhar para a IBEX.

- Ah é? Porque é que não o convidas para vir cá?

- Já o fiz. Diz que vai pensar. Eu nem o dei tempo para isso. Mandei o CV para o meu chefe, e ele vai a entrevista na Segunda-feira. Ou seja...

- Mais um marmanjo a caminho, he he! Vamos recordar os bons velhos tempos... isso quer dizer que é a Luisa, Natália e as amigas... Bravo! Eu brindo a isso.

- Também eu! respondeu, batendo as garrafas meio vazias de cerveja de 20 ml.

- Já agora, aviso-te: mantenha-a à distância do Javi!

A festa continuava cada vez mais animada, com a chegada de mais convidados. E nem meia hora tinha passado quando a Luisa chegava com os convidados vindos de Castela: o alto Javier, andaluz de Cadiz, a arruivada Natália e as duas amigas.

Javier aproximou-se dos quatro amigos, e abraçou-os fortemente, com palmadas nas costas. Sorrisos rasgados, afectos retomados, e uma pequena mala, pois tinha establecido que le ficaria em casa de Marco no fim de semana anterior à tal entrevista. Se as coisas corressem bem, eram cinco doidos solteiros, preparados para apanhar sol e beber as bejecas no quente Verão que ali vinha.

Depois, viu a Natália. Deram dois beijos na cara, olharam-se um à frente do outro e sorriram. Não tinham mudado muito: ele podia estar com entradas e umas rugas na cara, ela podia ter mudado o cabelo, mas o essencial estava lá: o cabelo arruivado, os olhos verdes, a cara quadrada, o sorriso desarmante.

- Abel, esta é a Fernanda. É argentina, de Buenos Aires

- Olá, prazer.

- Oi, respondeu, sorridente.

- E esta é a Olivia, é catalã, de Lleida.

- Oi. Bem-Vindo à Sildávia

- Gracias.

- Estejam à vontade, chicas. Eu não sou o anfitrião, mas acho que ele dirá o mesmo.

- Gracias. Hasta luego, disseram as duas.

Abel e Natália ficaram juntos, frente a frente. Sorriram, e ele perguntou:

- Queres uma destas? Já não há a arca verde, mas acho que ele ainda tem a dispensa cheia de cerveja, gracejou.

- Si, por supuesto.

- Então, vem comigo até à cozinha.

E lá foram os dois até lá.

(Continua amanhã)

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